O Papel da Justiça Militar da União

A Justiça Militar da União é uma justiça especializada prevista na Constituição Federal no artigo 92, inciso VI. A atuação da Justiça Militar está pautada em regras e leis que garantem o seu funcionamento como órgão judicial a serviço do interesse público. É com base em princípios legais do Direito e da doutrina que tem realizado o julgamento dos crimes militares, sejam eles cometidos por militares ou por civis.

A sua competência está prevista na Constituição Federal de 1988, nos artigos 122, 123 e 124: julgar os crimes militares previstos em Lei, respaldada, pelo Código Penal Militar (CPM) e o Código de Processo Penal Militar (CPPM).

A Lei 13.491/2017 ampliou a competência da Justiça Militar da União, pois promoveu relevantes alterações no artigo 9º, § 2º, do Código Penal Militar, que, inovando, passou a dispor sobre hipóteses em que a Justiça Militar passou a ser competente para processar e julgar militares da Forças Armadas em situações que anteriormente eram de competência do Tribunal do Júri.

A Justiça Militar da União contribui para a proteção dos direitos humanos quando julga os crimes definidos em lei, respeitando o devido processo legal, ou seja, a competência, o juízo imparcial e natural, bem como a ampla defesa e o contraditório, de acordo com o sistema acusatório democrático.

Criação, evolução e contexto histórico

No início dos anos 1800, a Europa passava por um momento de certa turbulência, envolta em seguidos conflitos que opunham principalmente França e Inglaterra. Após a derrota francesa para os ingleses na batalha naval do Cabo Trafalgar, Napoleão Bonaparte determinou o bloqueio continental, que consistia em proibir o acesso de navios ingleses a portos de países sob influência ou domínio francês. Contudo, Portugal e Inglaterra mantinham há algum tempo relações comerciais e políticas relativamente próximas, o que impossibilitava a adoção de medidas contrárias aos interesses ingleses em terras lusitanas.

Em outubro de 1807, ciente de que o exército francês marchava rumo à fronteira portuguesa, o Príncipe Regente Dom João, para ganhar tempo, ordenou o fechamento de seus portos a todas as embarcações de procedência britânica na tentativa de dissuadir uma iminente invasão das tropas de Napoleão Bonaparte. No entanto, naquele mesmo mês, as duas nações já haviam celebrado secretamente uma convenção para transferência da monarquia portuguesa para o Brasil em troca de futuros acordos comerciais.

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Embarque da Família Real Portuguesa – 1807
Nicolas Delerive (1755-1818)
Museu Nacional dos Coches – Lisboa

 

Dom João zarpou do porto de Lisboa em 29 de novembro de 1807 rumo à cidade do Rio de Janeiro, onde atracou no dia 8 de março de 1808. Como prometido, uma frota de navios britânicos o acompanhou durante toda a viagem.

Como um de seus primeiros atos em terras brasileiras, Dom João editou Alvará Régio com força de Lei em 1º de abril de 1808 criando o Conselho Supremo Militar e de Justiça, composto por três conselhos independentes: o Conselho Supremo Militar, o Conselho de Justiça e o Conselho de Justiça Supremo Militar.

O Conselho Supremo Militar era responsável por conhecer assuntos relacionados a soldos, promoções, lavratura de patentes e uso de insígnias. Era composto por conselheiros de guerra e do almirantado e por oficiais do exército e da armada convocados para servirem como vogais.

Já na esfera judicial, o Alvará de 1º de abril incumbiu ao Conselho de Justiça decidir em última instância sobre as ações impetradas contra réus sujeitos ao foro militar. Além disso, os processos originados em conselhos de guerra de corpos militares de todas as capitanias, com exceção das do Pará, Maranhão e domínios ultramarinos, deveriam ser encaminhados, também, ao Conselho de Justiça, que era composto por conselheiros de guerra, vogais e 3 ministros togados, que se reuniam ordinariamente nas tardes de quarta-feira.

O Conselho de Justiça Supremo Militar se reunia extraordinariamente às quintas-feiras, quando para este fim fosse avisado e requerido por seu juiz relator. Possuía a competência para julgar em última instância validade das presas feitas por embarcações de guerra da Armada Real, ou por armadores na forma da legislação pertinente vigente à época.

Inicialmente, o Conselho Supremo Militar e de Justiça instalou-se em dependências provisórias do Ministério da Guerra. A partir de 1811, passou a ter sede no Quartel-General do Exército no Campo de Santana, na cidade do Rio de Janeiro. De 1881 a 1905, passou a funcionar no torreão da esquina da Rua João Ricardo, com entrada pela Rua Visconde da Gávea, mas ainda em dependências do referido Quartel, realizando suas sessões em uma sala da Contadoria-Geral da Guerra, na cidade do Rio de Janeiro.

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Quartel-General do Exército no Campo de Santana em meados do século XX
Fonte: Acervo do STM

 

O Conselho funcionou de 1808 a 1891, tendo como Presidentes de Honra, em decorrência de suas posições de Chefes de Estado, os três monarcas que governaram o Brasil: o Príncipe Regente Dom João, depois Rei Dom. João VI, e os imperadores Dom Pedro I e seu filho, Dom Pedro II.

O fim da Guerra do Paraguai, em 1870, marcou o início de um período de mudanças na vida política e social brasileira. O regime imperial, que outrora gozava de elevado prestígio entre a população, não mais possuía o apoio necessário para se sustentar. Os elevados custos da guerra provocaram aumento da inflação e da dívida externa do país. Nesse contexto, a questão militar, caracterizada por discordâncias entre o Exército e o Presidente do Conselho de Ministros do Império, o Visconde de Ouro Preto, veio agravar sobremaneira a crise da Monarquia em fins da década de 1880.

Esses e outros fatores criaram o cenário propício para que, no dia 15 de novembro de 1889, cerca de 600 militares, políticos e representantes da sociedade civil, liderados pelo Marechal Manuel Deodoro da Fonseca, instaurassem a forma republicana de governo no Brasil através de um golpe de estado. O levante pôs fim a 48 anos de reinado de Dom Pedro II e decretou o banimento do Imperador e de toda a sua família para a Europa.

A nova forma de governo trouxe consigo diversas mudanças nos órgãos da administração pública. Para dissociar a identidade nacional da imagem do Imperador, foram instituídos novos símbolos nacionais, houve mudanças na bandeira nacional e foi suprimida a inscrição “imperial” de diversas instituições fundadas e/ou mantidas durante o Império. O Conselho Supremo Militar e de Justiça, por sua vez, deixou de existir a partir da promulgação da Constituição Republicana de 1891. Em seu lugar, foi criado o Supremo Tribunal Militar

Composto por 15 ministros vitalícios nomeados pelo Presidente da República, sendo 8 do Exército, 4 da Marinha e 3 juízes togados, o tribunal possuía competências judiciais e administrativas, assim como seu antecessor. Era o órgão responsável por julgar em segunda e última instância todos os crimes militares definidos em lei, processar e julgar seus membros no cometimento de crimes militares e estabelecer a forma processual militar na ausência de lei específica sobre a matéria. Já na esfera administrativa, era o responsável por mandar expedir as patentes militares dos oficiais efetivos, reformados, honorários e de classes anexas e por responder a consultas, com seu parecer, a respeito das questões que lhe fossem afetas pelo Presidente da República sobre economia, disciplina, direitos e deveres das forças de terra e mar e classes conexas.

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Sede do Supremo Tribunal Militar (1904 - 1914)
Fonte: Museu do STM

 

A partir de janeiro de 1920, o termo “Justiça Militar” passou a ser usado oficialmente, quando da edição da Lei nº 3.991, substituindo o título “Supremo Tribunal e Auditores”, utilizado até então.

Em 30 de outubro de 1920, foi sancionado pelo Presidente Epitácio Pessôa o Decreto nº 14.450, que instituiu o Código de Organização Judiciária e Processo Militar do Brasil. Tido como um dos diplomas legais mais importantes da história da Justiça Militar, dividiu o território nacional em 12 circunscrições judiciárias, fixou os critérios de nomeação de juízes, determinou o sorteio dos juízes militares dos Conselhos de Justiça e criou os cargos de Procurador-Geral da Justiça Militar, de Promotor e de Advogado de Ofício, para a defesa das praças. Alterou também a composição da corte do Supremo Tribunal Militar, diminuindo de 15 para 9 o número de membros, denominados ministros, dos quais 3 dentre oficiais-generais do Exército, 2 dentre os da Armada e 4 ministros civis, todos nomeados por ato do Presidente da República.

A promulgação da Constituição em 1934, após a Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, inovou ao inserir o Supremo Tribunal Militar entre os órgãos do Poder Judiciário. Até aquele momento, a Justiça Militar integrava o Poder Executivo da União.

Além da mudança, a nova Constituição estendeu a competência do tribunal para julgar civis que praticassem, na forma da lei, crimes contra a segurança externa nacional ou contra instituições militares.

Em 1936, a Lei nº 244, de 11 de setembro, instituiu o Tribunal de Segurança Nacional (TSN) como órgão de 1ª instância da Justiça Militar, que, dentre outras competências, deveria conhecer dos crimes praticados por militares, assemelhados e civis contra a segurança externa nacional quando cometidos com auxílio ou sob orientação de organizações estrangeiras ou internacionais, além de ser também de sua responsabilidade o julgamento dos crimes contra as instituições militares. Das decisões do TSN cabia recurso ao Supremo Tribunal Militar, sem efeito suspensivo.

Com o fim do Estado Novo em 1945, foi promulgada a quarta Constituição do Brasil. Naquele texto maior, houve nova mudança de nomenclatura, sai o termo “Supremo” e o tribunal passa a ter sua designação atual: Superior Tribunal Militar (STM). Com relação às suas atribuições, foram afastadas as competências administrativas que a Corte possuía desde sua criação, em 1808.

A partir de 1946, o cenário político brasileiro vivenciou um período de relativa democracia, com eleições diretas sendo realizadas sucessivamente. Foram eleitos os presidentes Eurico Gaspar Dutra, responsável por organizar a Força Expedicionária Brasileira que lutou durante a Segunda Guerra Mundial; Getúlio Vargas, que regressava à Presidência, dessa vez por eleição direta; Juscelino Kubitscheck, fundador da nova Capital Federal; e Jânio Quadros, que renunciaria em agosto de 1961, meses após sua posse, acusando “forças terríveis” de serem a causa de sua saída da Presidência.

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Sede do Superior Tribunal Militar (1916 a 1973)
Rio de Janeiro - RJ
Fonte: Acervo STM

 

Num contexto de polarização ideológica que dominou a política externa mundial na segunda metade do século XX, assume a Presidência da República em setembro de 1961 o VicePresidente João Goulart. Com uma pauta ligada à reforma agrária, desapropriações e a previsão da volta à legalidade do Partido Comunista, Jango, como era conhecido, desagradava setores conservadores da sociedade, em especial o partido oposicionista, a União Democrática Nacional (UDN).

Como consequência da agitação que tomou conta do país no primeiro trimestre de 1964, o General Olímpio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, marchou com suas tropas da cidade mineira de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro, dando início aos acontecimentos que, em 1º de abril daquele ano, destituíram o Presidente João Goulart e instauraram um governo militar no Brasil.

Considerando que o País precisava de tranquilidade para o trabalho em prol do seu desenvolvimento econômico e do bem-estar do povo e que não poderia haver paz sem autoridade, o poder constituinte originário da Revolução de 1964 editou o Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965.

O novo texto trouxe modificações significativas nas competências e na organização do Superior Tribunal Militar, que passou a ter não mais 11, como preceituava o Decreto-Lei nº 925, de 2 de dezembro de 1938, mas sim 15 ministros vitalícios, sendo 4 oriundos do Exército, 3 da Marinha, 3 da Aeronáutica e 5 civis. Com relação à competência, passou a processar e julgar os governadores de estado e seus secretários nos crimes contra o Estado e a ordem política e social, previstos na Lei nº 1.802, de 5 de dezembro de 1953, além de estender o foro militar a civis que praticassem atos contra a segurança nacional ou contra as instalações militares.

Durante o governo militar, devido ao aumento de suas competências, o STM teve destacada proeminência no cenário nacional. Inovou no ordenamento jurídico brasileiro ao ser a primeira Corte a conceder liminar em habeas corpus em agosto de 1964, tendo sido elogiado por diversos juristas por sua independência e serenidade nas decisões em tão delicado período da nossa história.

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Sede atual do Superior Tribunal Militar
Fonte: acervo do STM

 

Em 15 de fevereiro de 1973, o Superior Tribunal Militar transferiu-se do Rio de Janeiro para Brasília. No mesmo prédio funcionaram a Auditoria de Correição e a Auditoria da 11ª Circunscrição Judiciária Militar (CJM), que hoje possui sede própria.

Findo o governo militar em 1985, foi convocada Assembleia Constituinte para a edição e promulgação da Constituição Federal de 1988, que, em seus artigos 122, 123 e 124, entre outras providências, manteve a composição da Corte do STM com 15 ministros vitalícios e limitou a competência da Justiça Militar da União a processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

Em 19 de dezembro de 2018, o Presidente da República, Michel Temer, sancionou a Lei nº 13.774, que trouxe mudanças significativas na atuação da Justiça Militar da União. Os JuízesAuditores passaram a se chamar Juízes Federais da Justiça Militar, a presidir os Conselhos de Justiça, a julgar monocraticamente os habeas corpus, os habeas data e os mandados de segurança contra ato de autoridade militar praticado em razão da ocorrência de crime militar, exceto o praticado por oficial-general, e a processar e julgar os civis que cometerem crimes militares.

Ao longo dos seus mais de 210 anos de existência, o Superior Tribunal Militar tem trabalhado para prestar serviços jurisdicionais de relevância para a sociedade brasileira, tendo papel destacado na garantia do devido processo legal e dos direitos humanos.